Lembro-me: foi a muito tempo. Naqueles dias de cheiros suaves de terra molhada, que a gente nunca esquece mas, infelizmente, supera: a infância. Ficava na margem do nosso mundo, o tal muro. Na verdade eram dois: Um muro infinito, preto e outro, perpendicular a este, formado por um imenso espelho - também, praticamente infinito. O muro preto tinha nome: muro da Verdade, o de espelho, não.
Eu morava numa casinha simples, perto da fronteira. Aqui na cidade dizem que só os miseráveis moram perto dos muros. É verdade, infelizmente. Mas o que quero relatar aqui, foi o que me aconteceu numa manhã de verão - não me lembro o ano - algo que eu carregaria pro resto da vida e, talvez seja exatamente por isso, que estou onde estou.
O muro preto, como o nome já sugeria, era o fim. Não existia um dono do muro. Ele simplesmente sempre esteve lá, desde que o homem se entende como homem. Para depois do muro vamos todos um dia. Ninguém sabe a sua hora, mas todos sabemos que vamos. Sobre a Verdade, não tenho muito o que falar. Me detenho apenas sobre o outro muro.
Existia um tabu entre os que viviam na fronteira, que nunca deveríamos nos olhar no grande espelho. Ele podia revelar coisas sobre nós. Mas, como sempre fui um curioso, resolvi tirar minhas próprias conclusões.
Naquela manhã, fui me olhar no espelho. Ele era velho, cheio de manchas e musgos, quase não era mais um espelho. Resolvi conversar comigo mesmo. Esbocei umas poucas palavras e, após um tempo, uma voz respondeu. Ela veio de dentro do espelho e não era o meu reflexo falando. Era outra pessoa a qual eu não via, apenas ouvia.
Seu nome, Zahir. Era outro garoto, como eu. Foi tanto um espanto para mim, quanto para ele. Conversamos por toda a manhã: a amizade foi instantânea. Passamos a conversar todos os dias. Ali nascia uma amizade cega, mas que sabia ouvir muito bem.
Começamos a nos perguntar o porque de existir aquele muro. Ambos entendíamos o muro da Verdade e, em ambos os mundos, existia a ideia do "lado de lá". O que não fazia sentido era aquele maldito espelho.
Certo dia ouvi dizer de um cara que, com tantos outros, foi o responsável pela construção do muro. Logo pensei: "Nem sempre foi assim". Contei minha descoberta para Zahir e ele começou a pesquisar sobre no seu próprio mundo. Após um bom tempo, descobrimos o nome do sujeito que, desse lado, era conhecido como João C. Do lado de lá não tinha nome (ou nunca soubemos).
João e tantos outros, foram os responsáveis pela construção do muro. Na verdade, descobrimos ainda mais. O muro foi reconstruído. Antes, era conhecido por outro nome: "Véu". Mas essa história não me cabe contar. Por um tempo, vivemos em comunhão - o lado de cá e o lado de lá. Quando cresci foi que descobri que os adultos sabiam sobre o outro lado. Todos sabiam. E o tabu se formou, porque pensava-se que aproximando do espelho, poderíamos ser contaminados com o lado de lá. Veja, tudo isso porque existia o maldito espelho, porque o tal do João resolveu separar as coisas.
Acabei encontrando uns textos do João. Ele se denominava um escolhido e, chamava todos os que viviam do lado de cá de predestinados. Nunca entendi muito bem essa coisa toda. Somos homens, tanto os de cá, quanto os de lá. E todos nós estaremos juntos pra lá da Verdade. Concluí que o que João dizia era um pecado, uma segregação. Zahir com o tempo acabou se esquecendo da nossa amizade. Nunca mais o ouvi.
O tempo passou, cresci, resolvi trilhar o tal caminho. Talvez seja por isso tudo que estou aqui, relatando essas coisas. Não lamento por estar preso, sei que um dia terá fim e isso não tardará. Talvez amanhã mesmo eu saia por aí.
Násser estava certo. Após uma breve semana, o chefe da guarda o liberou por bom comportamento. Ainda faltava muito caminho para ele trilhar.
Násser estava certo. Após uma breve semana, o chefe da guarda o liberou por bom comportamento. Ainda faltava muito caminho para ele trilhar.
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