quarta-feira, 6 de junho de 2012

Eleitismo

"Todos deviam perecer, exceto raros eleitos. Germes de espécie até então desconhecida introduziam-se no organismo humano. Mas tais corpúsculos eram espíritos dotados de inteligência e vontade. Os indivíduos afetados tornavam-se imediatamente desequilibrados e loucos. Contudo, coisa estranha, nunca os homens se haviam tido tamanha confiança na infalibilidade de seus juízos, de suas teorias científicas, de seus princípios morais. Aldeias, cidades, povos inteiros eram atingidos pelo mal e perdiam a razão. Estavam todos cheios de angústia e no estado de não se compreenderem uns aos outros. Cada qual julgava-se o único na posse da verdade, desolando-se ao considerar os semelhantes. Cada qual batia no peito, torcia as mãos e chorava... Não podiam entender-se sobre as sanções a adotar sobre o bem e o mal, e não sabiam a quem condenar ou absolver. Matavam-se uns aos outros numa espécie de absurdo furor. Reuniam-se e formavam imensos exércitos para marcharem uns contra os outros, porém uma vez começada a campanha, as tropas dividiam-se, rompiam-se as fileiras e os homens trucidavam-se e devoravam-se mutuamente. Nas cidades, tocavam a rebate de manhã â noite. Todos eram chamados às armas, mas por quem? Por quê? Ninguém teria podido dizê-lo e o pânico se propagava. Abandonaram-se os propósitos mais simples, pois cada qual propunha ideais e reformas sobre as quais ninguém se entendia. A agricultura estava abandonada. Formaram-se grupos aqui e ali. Os homens juravam não se separar, e um minuto após esqueciam a resolução e começavam a acusar-se mutuamente, abatendo-se e matando-se. Por toda a parte irrompiam a fome, os incêndios. Parecia tudo, homens e coisas. E o flagelo devastava cada vez mais. Só podiam ser salvos no mundo inteiro alguns homens eleitos, puros, destinados a começar nova raça humana, a renovar e a purificar a terra. Entretanto, ninguém os tinha visto nem lhes havia ouvido as palavras ou o som da voz."

Crime e Castigo,
Fiódor Dostoiévski

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