quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O Nome da História

"A eremita trouxe as xícaras de chá e sentou-se de frente para o adolescente na mesa de madeira debaixo da pérgula, junto de onde ele tinha deixado a bicicleta. Tomaram um gole em sincronia e resvalaram numa página de silêncio enquanto observavam o ocre sem limites de Val d'orcia.
- Em que você está pensando - ela disse.
- Que talvez Deus não exista.
Ele tomou mais um gole, mas ela franziu um pouco a testa e não soube preservar o silêncio que ele talvez esperasse.
- Eu às vezes oro para que Deus não exista - ela disse de repente, a xícara junto ao peito como uma vela numa procissão.
- Como assim?
- Não sei. Às vezes penso que seria belíssimo de Deus fosse uma invenção dos homens.
- Não sei - ele coço a barba rala. - Eu preferia que Deus fosse mais importante do que uma boa alucinação.
- É que - ela gastou um instante juntando palavras para descrever o irromper de sangue que trazia dentro do peito - isso se ajustaria perfeitamente ao Deus que eu gostaria de adorar e servir. Um Deus que se permitisse criar. Que se permitisse aperfeiçoar.
- Mas, que se fosse assim, seria para sempre subalterno aos homens.
- Não vejo porquê - ela foi sincera. - Talvez tudo no universo seja subalterno aos homens, menos esse Deus.
- Você está de novo entrando em terreno de excomunhão.
- E você veio buscar companhia num eremitério - ela explicou, vagamente irritada.
E voltaram a habitar o silêncio. Ele arriscou olhá-la por um instante, depois fechou os olhos e meneou a cabeça para capturar o dia no cheiro do vento.
- Acho que tudo está ligado - ela não resistiu - a essa coisa humana de contar histórias. Histórias que tenham começo, meio e fim. O desejo de ouvir e contar histórias é parte da nossa própria estrutura. O homem é maior que os anjos, mas irrompe o que estiver fazendo para dobrar-se à superioridade da narrativa. O universo inteiro é menor que a menor parábola.
- Você está querendo dizer que Deus é uma ficção.
- Não, estou dizendo que as histórias podem ser indicação de Deus - ela corrigiu, e apertava a xícara entre os dedos como se o calor da tarde não bastasse para aquecê-la. - E que nós, seres humanos, somos feitos de tal forma que o universo é regido de acordo com as histórias que contamos. Quando as ficções mudam, o mundo muda em conformidade.
- Isso é porque contamos histórias para inventar um sentido para o mundo - ele conformou-se ao papel de antagonista que no rumo da conversa ela havia destinado a ele. - A ficção dá a ordenação que o mundo por si mesmo não tem. Para ouvir histórias é preciso contribuir com uma espécie de "submissão experimental", uma ingenuidade assumida de caso pensado. Fazemos isso na esperança de encontrar um sentido para a coisa toda. O que você está dizendo é que Deus não passa do resultado mais elevado desse tipo de experimentação. A maior história jamais contada, por assim dizer.
- Quero dizer que acho que Deus existe mesmo, mas que só se manifesta na ficção.
- O que é absurdo - ele disse, e imediatamente lamentou não ter um argumento melhor para interpor.
Ele mudou de posição no banco e uma perna roçou por um instante a meia preta dela. Ela recuou imediatamente, mas mais por coordenação fraternal do que por verdadeiro constrangimento. Nunca falariam a respeito disso, mas sabiam que não fosse a diferença abismal de idade teriam juntos explorado em redemoinho as camas do verão. Nem os votos dela nem o constrangimento dele teriam se colocado no caminho.
- E há algo sobre Deus que não seja absurdo? A ortodoxia, que é conservadora, insiste nisso. A liturgia. Nossa amizade é absurda.
Ele tomou o último gole e afastou a xícara para o centro da mesa. Depois alçou uma perna para cima do banco, apertou-a junto do corpo e apoiou o queixo no joelho. Ela olhava com um vago sorriso para um ponto no ar.
- Estou aqui tentando lembrar o nome de uma história de Jorge Luis Borges¹ sobre um agente secreto num país estrangeiro que mata um homem só por causa do nome dele. Ele conversam um pouco sobre destino, vida e morte e depois o sujeito mata esse civil desconhecido só porque o nome dele, quando a notícia do assassinato sair no jornal, servirá de senha para que a organização do agente deslanche alguma mobilização de guerra.
- E por que você quer lembrar o nome da história?
- Não sei. É que a ideia do conto se tornou de imediato uma obsessão pra mim, essa de matar uma pessoa só para passar uma mensagem - ela finalmente olhou diretamente para ele. Você me mataria para passar uma mensagem? Como posso saber que você não tem um revólver na mochila?
- Você não tem o nome certo - ele disse, e procurou o horizonte. - Não é a menagem que eu quero passar.
Ela baixou a cabeça e sorriu, imediatamente irritada por ter se permitido irritar tão facilmente. Ela às vezes esquecia que ele era homem, mas isso só até que ele a fizesse lembrar do jeito mais inequívoco. Que os homens cedessem tão facilmente ao seu próprio arquétipo era, por si mesmo, o grande arquétipo masculino.
- A pergunta que você na verdade que me fazer - ele adivinhou, - é se eu mataria Deus para passar uma mensagem.
E olhou para ela.
- A pregunta que eu quero fazer - ela exigiu, muito empertigada, - é se Deus se deixaria matar para passar uma mensagem."


Disse Paulo Brabo em "As Divinas Gerações"



¹ "O jardim de veredas que se bifurcam" - Conto de Borges publicado no livro "Ficções". O nome do homem em questão é Albert, morto pelo protagonista para indicar a cidade a ser atacada pelo exército alemão. Conto altamente recomendado para qualquer pessoa.

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