segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A fotografia da sociedade do espetáculo

Para deixar bem explícito antes que me apedrejem: sou apaixonado por fotografia. Não é, essencialmente, da arte que pretendo escrever aqui. Pretendo apenas esboçar um pensamento que me veio um dia desses, não que eu seja o detentor dele, afinal, só o percebi pelo acaso de ler coisas parecidas.
Para um completo entendimento do assunto, sugiro o livro que dá nome a esse artigo "A sociedade do espetáculo" de Guy Debord, ou se você preferir, esse texto aqui sobre algumas coisas que o livro aborda.

Você junta grana pra comprar uma canon semi-profissional para entrar no hall dos fotógrafos amadores, anda pra lá e pra cá ostentando sua câmera overrated, tira algumas fotos legais, bota uns filtros, cria um álbum no facebook e recebe algumas curtidas. Depois de um tempo cansa e passa a carregar menos a sua câmera, até o dia em que fica de saco cheio quando alguém lhe pede pra quebrar um galho na festinha da galera. Ou então, mas comum que Mc Donald's nos EUA, saca um smartphone qualquer e imortaliza cada momento da sua vida numa conta do instagram. Obviamente estou falando de mim mesmo.
Esse é o tipo de situação que só foi possível graças a fotografia digital. Até a era analógica, as coisas ainda eram um pouco controladas. Falo dessa tara hipster por fotografia, da qual todos os filhos da classe média, orgulhosamente, afirmam ter.
Mas qual é o problema em querer tirar fotos o tempo todo? Essa é uma pergunta retórica.
Façamos uma viagem à sua infância. Quantas fotos você tirou nessa época e qual a relação entre elas e as suas lembranças do passado?
Eu não lembro de quase nada a não ser do que vejo nos álbuns de família. Salvo uma cena ou outra (que marcaram alguma característica conservada até hoje), as lembranças que temos são falsas-lembranças. Ao ver uma foto, lembramos - ou não - daquele momento exato em que ela foi batida, e o resto da cena construímos a partir dela. Faça um exercício mental e verá que há alguma verdade nisso. Naquela época, não se batiam fotos aleatoriamente com tanta frequência que nem hoje - era custoso revelar cada foto e não havia a possibilidade de conferir na hora o resultado (exclui-se a polaroid, mas que também era cara).
Hoje registramos cada momento do dia: desde o almoço na cantina do trabalho até o pôr-do-sol no arpoador. Com que objetivo? Tirar uma de fotógrafo amador? Ostentar uma boa-vida para os amigos de redes sociais? Seja qual for, o resultado é sempre o mesmo: algumas curtidas e momentos perdidos. Exatamente: perdidos. Ao clicar uma foto, imortalizamos aquilo que a lente consegue captar, não os nossos olhos, não a nossa percepção, não a nossa alma. O problema reside em que ao me preocupar em tirar fotos, esqueço invariavelmente, de viver aquele momento. Enquanto há um objeto que se enquadre no quadro de captação, há um mundo ao redor que não conseguimos captar - e perceber. Coisa que um fotógrafo de verdade sabe muito bem, e exatamente por isso, ele tenta captar um lado que poucos enxergam (isso talvez seja o que chamamos de arte).
Mas o efeito pior ainda não é este. Além de "atrapalhar" o momento, a necessidade de fotografar gera muitas falsas-lembranças e, a longo prazo, uma "falsa-vida". Se somarmos isso a constante superexposição a que estamos submetidos todos os dias com fotos, vídeos, textos, etc, as consequências são ainda piores. Outro efeito catastrófico é a perda de memória. Ao se habituar com a fotografia quase onipresente, atrofiamos a nossa capacidade de armazenamento. Consegue lembrar da última festa com os amigos com detalhes sem olhar nenhuma foto? Aquele lugar magnífico que você foi a 10 anos atrás e o momento que viveu lá sem ter tirado nenhuma foto realmente aconteceu?
Por experiência própria, perdi boa parte dessa capacidade de armazenamento depois da explosão das redes sociais e das câmeras digitais. Tenho medo de pensar como estará minha memória daqui a 30 anos. Talvez eu nem me reconheça mais sem me olhar numa foto...
O paradoxo é que aqui estou eu, utilizando das redes sociais para falar de um mal que elas ajudam a propagar. Em tempos de apocalipse zumbi, esquecemos que o T-vírus pode muito bem estar nas mãos de cada um de nós, esperando para soltar sua letalidade a cada clic.

Ps. A fotografia dita aqui não se restringe apenas a tirar fotos, mas a todas as possibilidades a que estamos submetidos graças à sociedade do espetáculo.

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