quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Sobre santos e pecadores - A Natureza do Mal

Segue abaixo um enxerto do romance "The White People" de Arthur Machen, um escritor do final do séc XIX e começo do séc XX um tanto quanto desconhecido e nem por isso, indigno.

[...]

- Creio que o senhor cai no erro frequente daqueles que limitam o mundo espiritual às regiões do bem supremo. Os seres extremamente perversos também fazem parte do mundo espiritual. O homem comum, Carnal e sensual, nunca será um grande santo. Nem um grande pecador. Na maioria, somos simplesmente criaturas contraditórias e, no fim de contas, desprezíveis. Seguimos o nosso quotidiano caminho de lama sem compreender o profundo significado das coisas, e eis porque, em nós, o bem e o mal são idênticos: de ocasião, sem importância. - Disse Ambrose.

- Pensa então que um grande pecador é um asceta, da mesma forma que o grande santo?

- Aqueles que são grandes, tanto no bem como no mal, são os que abandonam as cópias imperfeitas e se dirigem aos originais perfeitos. Para mim, não tenho qualquer dúvida: os maiores de entre os santos nunca fizeram uma boa ação, no sentido vulgar do termo. E, por outro lado, existem homens que desceram ao fundo dos abismos do mal, e que, em toda a sua vida, nunca cometeram aquilo a que se chama uma má ação. 

Deixou a sala por um momento, Cotgrave voltou-se para o amigo e agradeceu-lhe que o tivesse apresentado a Ambrose. 

- É formidável - disse. - Nunca tinha visto este gênero de louco. 

 Ambrose reapareceu com uma nova provisão de uísque e serviu com generosidade os dois homens. Criticou ferozmente a seita dos abstinentes, mas serviu-se um copo de água. Ia recomeçar o monólogo, quando Cotgrave o interrompeu: 

- Os seus paradoxos são monstruosos. Então um homem pode ser um grande pecador e no entanto nada fazer de culpável? Essa é boa!

 - Está completamente enganado - disse Ambrose. - Eu nunca faço paradoxos; bem gostaria de poder fazê-los. Disse simplesmente que um homem pode ser um grande conhecedor dos vinhos de Borgonha e no entanto nunca ter provado vinho ruim nas tabernas. É tudo, e é provável que seja antes um truísmo do que um paradoxo, não é verdade? A sua reação é a prova de que não faz a menor ideia do que pode ser o pecado. Oh, evidentemente, há uma relação entre o Pecado maiúsculo e os atos considerados culpáveis: assassinato, roubo, adultério, etc. Exatamente a mesma relação que há entre o alfabeto e a mais genial poesia. O seu erro é quase universal: adquiriu, como toda a gente, o hábito de apreciar as coisas através de óculos sociais. todos pensamos que um homem que nos faz mal, a nós, ou aos nossos vizinhos, é um homem mau. E é-o, sob o ponto de vista social. Mas não compreende que o Mal, na sua essência, é uma coisa solitária, uma paixão da alma? O assassino médio, na sua qualidade de assassino, não é de forma alguma um pecador no verdadeiro sentido da palavra. É simplesmente um animal perigoso de que nos devemos desembaraçar para salvar a pele. Eu classificá-lo-ia de muito melhor vontade entre as feras do que entre os pecadores.

 - Tudo isso me parece bastante estranho. 

 - Mas não é. O assassino não mata por razões positivas, mas negativas; falta-lhe qualquer coisa que os não-assassinos possuem. O Mal, em contrapartida, é totalmente positivo. Mas positivo no mau sentido. E é raro. Há certamente menos pecadores verdadeiros do que santos. Quanto a esses a que chama criminosos, são seres incômodos, bem entendido, e dos quais a sociedade tem razão de se defender, mas entre os seus fatos anti-sociais e o Mal há uma enorme distância, pode crer!

Fazia-se tarde. O amigo que levara Cotgrave a casa de Ambrose já ouvira sem dúvida tudo aquilo. Escutava com um sorriso fatigado e um pouco trocista, mas Cotgrave começava a pensar que o seu alienado talvez fosse um sábio. 

- Sabe que estou imensamente interessado? - disse. - Julga então que não compreendemos a verdadeira natureza do mal?

- Damos-lhe valor demais. Ou então de menos. Por um lado, o que chamamos pecado são as infrações às leis da sociedade, aos tabus sociais. É um exagero absurdo. Por outro lado, damos tamanha importância ao pecado que consiste em deitarem a mão aos nossos bens ou às nossas mulheres que esquecemos completamente o que há de horrível nos verdadeiros pecados.

- Mas o que é então o pecado? - perguntou Cotgrave.

- Sou obrigado a responder à sua pergunta com outras perguntas. Que sensação experimentaria se o seu gato ou o seu cão lhe começasse a falar com voz humana? Se as rosas do seu jardim se pusessem a cantar? Se as pedras da rua aumentassem de volume sob os seus olhos? Pois bem, estes exemplos podem dar-lhe uma pálida ideia do que é realmente o pecado.

 - Escutem - disse o terceiro homem, que até ali se mantivera muito calmo -, parecem- me ambos bastante excitados. Eu vou para casa. Perdi o meu autocarro e vou ser obrigado a andar a pé. 

Ambrose e Cotgrave instalaram-se mais profundamente nos respectivos caldeirões depois da sua partida. Com a bruma da madrugada que gelava as vidraças, a claridade dos candeeiros tornava-se pálida.

- O senhor surpreende-me - disse Cotgrave. - Nunca tinha pensado nessas coisas. Se é realmente assim, é necessário remover tudo. Então, na sua opinião, a essência do pecado seria... 

- Pretender conquistar o céu de assalto - disse Ambrose. - Para mim o pecado reside na vontade de penetrar de maneira interdita numa esfera diferente e mais elevada. Deve portanto compreender o motivo por que é tão raro. Poucos homens na verdade, desejam penetrar noutras esferas, quer sejam elevadas ou baixas, de forma permitida ou proibida. Há poucos santos. E os pecadores, no sentido em que o entendo, são ainda mais raros. E os homens de gênio (que por vezes participam de ambos) são raros também... Mas é talvez mais difícil ser um grande pecador do que um grande santo.

- Por o pecado ser profundamente contra a natureza?

- Exatamente. A santidade exige um esforço grande, ou quase, mas é um esforço que se exerce em vias que outrora eram naturais. Trata-se de recuperar o êxtase que o homem conheceu antes da queda. Mas o pecado é uma tentativa para obter um êxtase e uma sabedoria que não são, e que nunca foram dados ao homem, e aquele que o tenta torna-se demônio. Eu disse- lhe que o simples assassino não é necessariamente um pecador. E é verdade, mas o pecador é, por vezes, um assassino. Estou a pensar em Gilles de Rais, (Senhor feudal do século XV, célebre pelos seus crimes; chegou a matar crianças nas suas cerimônias de magia negra.). por exemplo. Sabe que, se o bem e o mal estão igualmente fora do alcance do homem de hoje, do homem vulgar, social e civilizado, o mal é-o num sentido ainda mais profundo. O santo esforça-se por recuperar um dom que perdeu; o pecador esforça-se por qualquer coisa que nunca possuiu. No fim de contas, ele recomeça a Queda.

- É católico? - pergunta Cotgrave.

- Sim, sou um membro da igreja anglicana perseguida.

- Então o que pensa desses textos que chamam pecado aquilo que o senhor classifica de delito sem importância?

- Repare, por favor, que nesses textos da minha religião vê-se continuamente surgir o termo feiticeiro, que me parece a palavra-chave. Os delitos menores, que são chamados pecados, só são chamados assim na medida em que é o feiticeiro que é perseguido pela minha religião, sob a máscara do autor desses pequenos delitos. Pois os feiticeiros servem-se das fraquezas humanas resultantes da vida material e social como instrumentos para atingir o seu objetivo infinitamente execrável. E deixe-me dizer- lhe o seguinte: os nossos sentidos superiores estão tão embotados, estamos a tal ponto saturados de materialismo, que com certeza não reconheceríamos o verdadeiro mal se por acaso o encontrássemos.

- Mas não experimentaríamos, apesar de tudo, um certo horror? Esse horror que há pouco evocou ao convidar-me a imaginar rosas que começassem a cantar?

- Se fôssemos seres naturais, sim. As crianças, certas mulheres e os animais experimentam esse horror. Mas, na maior parte de nós, as convenções, a civilização e a educação ensurdeceram e obscureceram a natureza. Por vezes podemos reconhecer o mal pelo seu ódio ao bem; é tudo e é puramente fortuito. Na realidade, os Hierarcas do Inferno passam despercebidos entre nós.

- Pensa que sejam eles próprios inconscientes do mal que encarnam?

- Creio que sim. O verdadeiro mal, no homem, é como a santidade e o gênio. É um êxtase da alma, qualquer coisa que ultrapassa os limites naturais do espírito, que escapa à consciência. Um homem pode ser infinitamente, horrivelmente mau e nunca o suspeitar. Mas, repito, o mal, no verdadeiro sentido da palavra, é raro. Creio mesmo que se torna cada vez mais raro.

- Tento segui-lo - disse Cotgrave. - Quer dizer que o Mal verdadeiro é de uma essência completamente diferente daquilo a que chamamos vulgarmente o mal?

 - Absolutamente. Um pobre tipo aquecido pelo álcool entra em casa e mata a pontapés a mulher e os filhos. É um assassino. E Gilles de Rais também é um assassino. Mas compreende o fosso que os separa? A palavra é acidentalmente a mesma em cada caso, mas o sentido é totalmente diferente. É certo que existe a mesma fraca semelhança entre todos os pecados sociais e os verdadeiros pecados espirituais, mas aqui trata-se da sombra e ali da realidade. Se é um pouco teólogo deve compreendê-lo.

- Confesso que não dediquei muito tempo à teologia. - disse Cotgrave. Lamento-o, mas, para voltar ao nosso assunto, acha que o pecado é uma coisa oculta, secreta?

- Sim. É o milagre infernal, como a santidade é o milagre sobrenatural. O verdadeiro pecado eleva-se a um tal grau que nós não podemos de forma alguma suspeitar da sua existência. Ele é como a nota mais baixa do órgão: tão profunda que ninguém a ouve. Por vezes há falhas, quedas que conduzem ao hospital de loucos ou a desenlaces mais horríveis ainda. Mas em caso algum o deve confundir com as culpas sociais. Lembre-se do Apóstolo: ele falava do outro lado e fazia uma distinção entre as ações caridosas e a caridade. Assim como se pode dar tudo aos pobres e no entanto ter falta de caridade, podem evitar-se todos os pecados e no entanto ser uma criatura do mal.

- Aí está uma singular psicologia! - disse Cotgrave. Mas confesso que ela me agrada. Suponho que, na sua opinião, o verdadeiro pecador podia facilmente passar por uma personagem inofensiva?

- Certamente. O mal verdadeiro nada tem a ver com a sociedade. O Bem também não, aliás. Acha que teria sentido prazer com a companhia de São Paulo? Pensa que se teria entendido bem com sir Galaad? Passa-se o mesmo com pecadores e com santos. Se encontrasse um verdadeiro pecador, e nele reconhecesse o pecado, é certo que se sentiria tomado de pânico. Mas talvez não houvesse qualquer motivo para que esse homem lhe desagradasse. Pelo contrário, é muito possível que se conseguisse esquecer o pecado dele, achasse a sua convivência agradável. E no entanto!... Não, ninguém pode adivinhar quanto o verdadeiro mal é pavoroso! Se as rosas e os lírios deste jardim começassem subitamente a cantar nesta madrugada que desponta, se os móveis desta casa começassem a andar em procissão, como no conto de Maupassant!

- Estou satisfeito por ter voltado a essa comparação disse Cotgrave -, pois queria perguntar-lhe a que correspondem, na humanidade, essas proezas imaginárias das coisas de que fala. Mais uma vez, o que é então o pecado? Gostaria enfim de um exemplo concreto.

Pela primeira vez, Ambrose hesitou:

- Já lhe disse, o verdadeiro mal é raro. O materialismo da nossa época, que muito fez para suprimir a santidade, talvez tenha feito ainda mais para suprimir o mal. Nós achamos a Terra tão confortável que não temos vontade nenhuma de subir nem de descer. Tudo se passa como se o especialista do Inferno estivesse reduzido a trabalhos puramente arqueológicos.

- No entanto, consta que as suas investigações se estenderam até à época presente?

- Vejo que está realmente interessado. Pois bem, confesso que na verdade reuni alguns documentos...

[...]

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