Segue abaixo um enxerto do romance "The White People" de Arthur Machen, um escritor do final do séc XIX e começo do séc XX um tanto quanto desconhecido e nem por isso, indigno.
[...]
- Creio que o senhor cai no erro frequente daqueles que limitam o mundo espiritual às regiões do bem supremo. Os seres extremamente perversos também fazem parte do mundo espiritual. O homem comum, Carnal e sensual, nunca será um grande santo. Nem um grande pecador. Na maioria, somos simplesmente criaturas contraditórias e, no fim de contas, desprezíveis. Seguimos o nosso quotidiano caminho de lama sem compreender o profundo significado das coisas, e eis porque, em nós, o bem e o mal são idênticos: de ocasião, sem importância. - Disse Ambrose.
[...]
- Creio que o senhor cai no erro frequente daqueles que limitam o mundo espiritual às regiões do bem supremo. Os seres extremamente perversos também fazem parte do mundo espiritual. O homem comum, Carnal e sensual, nunca será um grande santo. Nem um grande pecador. Na maioria, somos simplesmente criaturas contraditórias e, no fim de contas, desprezíveis. Seguimos o nosso quotidiano caminho de lama sem compreender o profundo significado das coisas, e eis porque, em nós, o bem e o mal são idênticos: de ocasião, sem importância. - Disse Ambrose.
- Pensa então que um grande pecador é um asceta, da mesma forma que o grande santo?
- Aqueles que são grandes, tanto no bem como no mal, são os que abandonam as cópias imperfeitas e se dirigem aos originais perfeitos. Para mim, não tenho qualquer dúvida: os maiores de entre os santos nunca fizeram uma boa ação, no sentido vulgar do termo. E, por outro lado, existem homens que desceram ao fundo dos abismos do mal, e que, em toda a sua vida, nunca cometeram aquilo a que se chama uma má ação.
Deixou a sala por um momento, Cotgrave voltou-se para o amigo e agradeceu-lhe que o tivesse apresentado a Ambrose.
- É formidável - disse. - Nunca tinha visto este gênero de louco.
Ambrose reapareceu com uma nova provisão de uísque e serviu com generosidade os dois homens. Criticou ferozmente a seita dos abstinentes, mas serviu-se um copo de água. Ia recomeçar o monólogo, quando Cotgrave o interrompeu:
- Os seus paradoxos são monstruosos. Então um homem pode ser um grande pecador e no entanto nada fazer de culpável? Essa é boa!
- Está completamente enganado - disse Ambrose. - Eu nunca faço paradoxos; bem gostaria de poder fazê-los. Disse simplesmente que um homem pode ser um grande conhecedor dos vinhos de Borgonha e no entanto nunca ter provado vinho ruim nas tabernas. É tudo, e é provável que seja antes um truísmo do que um paradoxo, não é verdade? A sua reação é a prova de que não faz a menor ideia do que pode ser o pecado. Oh, evidentemente, há uma relação entre o Pecado maiúsculo e os atos considerados culpáveis: assassinato, roubo, adultério, etc. Exatamente a mesma relação que há entre o alfabeto e a mais genial poesia. O seu erro é quase universal: adquiriu, como toda a gente, o hábito de apreciar as coisas através de óculos sociais. todos pensamos que um homem que nos faz mal, a nós, ou aos nossos vizinhos, é um homem mau. E é-o, sob o ponto de vista social. Mas não compreende que o Mal, na sua essência, é uma coisa solitária, uma paixão da alma? O assassino médio, na sua qualidade de assassino, não é de forma alguma um pecador no verdadeiro sentido da palavra. É simplesmente um animal perigoso de que nos devemos desembaraçar para salvar a pele. Eu classificá-lo-ia de muito melhor vontade entre as feras do que entre os pecadores.
- Tudo isso me parece bastante estranho.
- Mas não é. O assassino não mata por razões positivas, mas negativas; falta-lhe
qualquer coisa que os não-assassinos possuem. O Mal, em contrapartida, é totalmente
positivo. Mas positivo no mau sentido. E é raro. Há certamente menos pecadores
verdadeiros do que santos. Quanto a esses a que chama criminosos, são seres incômodos, bem entendido, e dos quais a sociedade tem razão de se defender, mas entre os seus fatos anti-sociais e o Mal há uma enorme distância, pode crer!
Fazia-se
tarde. O amigo que levara Cotgrave a casa de Ambrose já ouvira sem dúvida tudo
aquilo. Escutava com um sorriso fatigado e um pouco trocista, mas Cotgrave começava
a pensar que o seu alienado talvez fosse um sábio.
- Sabe que estou imensamente interessado? - disse. - Julga então que não
compreendemos a verdadeira natureza do mal?
- Damos-lhe valor demais. Ou então de menos. Por um lado, o que chamamos pecado
são as infrações às leis da sociedade, aos tabus sociais. É um exagero absurdo. Por
outro lado, damos tamanha importância ao pecado que consiste em deitarem a mão
aos nossos bens ou às nossas mulheres que esquecemos completamente o que há de
horrível nos verdadeiros pecados.
- Mas o que é então o pecado? - perguntou Cotgrave.
- Sou obrigado a responder à sua pergunta
com outras perguntas. Que sensação
experimentaria se o seu gato ou o seu cão lhe começasse a falar com voz humana? Se
as rosas do seu jardim se pusessem a cantar? Se as pedras da rua aumentassem de
volume sob os seus olhos? Pois bem, estes exemplos podem dar-lhe uma pálida ideia
do que é realmente o pecado.
- Escutem - disse o terceiro homem, que até ali se mantivera muito calmo -, parecem-
me ambos bastante excitados. Eu vou para casa. Perdi o meu autocarro e vou ser
obrigado a andar a pé.
Ambrose e Cotgrave instalaram-se mais profundamente nos respectivos caldeirões
depois da sua partida. Com a bruma da madrugada que gelava as vidraças, a claridade
dos candeeiros tornava-se pálida.
- O senhor surpreende-me - disse Cotgrave. - Nunca tinha pensado nessas coisas. Se é
realmente assim, é necessário remover tudo. Então, na sua opinião, a essência do
pecado seria...
- Pretender conquistar o céu de assalto - disse Ambrose.
- Para mim o pecado reside na vontade de penetrar de maneira interdita numa esfera
diferente e mais elevada. Deve portanto compreender o motivo por que é tão raro.
Poucos homens na verdade, desejam penetrar noutras esferas, quer sejam elevadas ou
baixas, de forma permitida ou proibida. Há poucos santos. E os pecadores, no sentido
em que o entendo, são ainda mais raros. E os homens de gênio (que por vezes
participam de ambos) são raros também...
Mas é talvez mais difícil ser um grande
pecador do que um grande santo.
- Por o pecado ser profundamente contra a natureza?
- Exatamente. A santidade exige
um esforço grande, ou quase, mas é um esforço que se exerce em vias que outrora
eram naturais. Trata-se de recuperar o êxtase que o homem conheceu antes da queda.
Mas o pecado é uma tentativa para obter um êxtase e uma sabedoria que não são, e
que nunca foram dados ao homem, e aquele que o tenta torna-se demônio. Eu disse-
lhe que o simples assassino não é necessariamente um pecador. E é verdade, mas o
pecador é, por vezes, um assassino. Estou
a pensar em Gilles de Rais, (Senhor feudal
do século XV, célebre pelos seus crimes; chegou a matar crianças nas suas cerimônias
de magia negra.). por exemplo. Sabe que, se o bem e o mal estão igualmente fora do
alcance do homem de hoje, do homem vulgar, social e civilizado, o mal é-o num sentido
ainda mais profundo. O santo esforça-se por recuperar um dom que perdeu; o pecador
esforça-se por qualquer coisa que nunca possuiu. No fim de contas, ele recomeça a
Queda.
- É católico? - pergunta Cotgrave.
- Sim, sou um membro da igreja anglicana perseguida.
- Então o que pensa desses textos que chamam pecado aquilo que o senhor classifica
de delito sem importância?
- Repare, por favor, que nesses textos da minha religião vê-se continuamente surgir o
termo feiticeiro, que me parece a palavra-chave. Os delitos menores, que são
chamados pecados, só são chamados assim na medida em que é o feiticeiro que é
perseguido pela minha religião, sob a máscara do autor desses pequenos delitos. Pois
os feiticeiros servem-se das fraquezas humanas resultantes da vida material e social
como instrumentos para atingir o seu objetivo infinitamente execrável. E deixe-me dizer-
lhe o seguinte: os nossos sentidos superiores estão tão embotados, estamos a tal ponto
saturados de materialismo, que com certeza não reconheceríamos o verdadeiro mal se
por acaso o encontrássemos.
- Mas não experimentaríamos, apesar de tudo, um certo horror? Esse horror que há
pouco evocou ao convidar-me a imaginar rosas que começassem a cantar?
- Se fôssemos seres naturais, sim. As crianças, certas mulheres e os animais
experimentam esse horror. Mas, na maior parte de nós, as convenções, a civilização e
a educação ensurdeceram e obscureceram a
natureza. Por vezes podemos reconhecer
o mal pelo seu ódio ao bem; é tudo e é puramente fortuito. Na realidade, os Hierarcas
do Inferno passam despercebidos entre nós.
- Pensa que sejam eles próprios inconscientes do mal que encarnam?
- Creio que sim. O verdadeiro mal, no homem, é como a santidade e o gênio. É um
êxtase da alma, qualquer coisa que ultrapassa os limites naturais do espírito, que
escapa à consciência. Um homem pode ser infinitamente, horrivelmente mau e nunca o
suspeitar. Mas, repito, o mal, no verdadeiro sentido da palavra, é raro. Creio mesmo
que se torna cada vez mais raro.
- Tento segui-lo - disse Cotgrave. - Quer dizer que o Mal verdadeiro é de uma essência
completamente diferente daquilo a que chamamos vulgarmente o mal?
- Absolutamente. Um pobre tipo aquecido pelo álcool entra em casa e mata a pontapés
a mulher e os filhos. É um assassino. E
Gilles de Rais também é um assassino. Mas
compreende o fosso que os separa? A palavra é acidentalmente a mesma em cada
caso, mas o sentido é totalmente diferente. É certo que existe a mesma fraca
semelhança entre todos os pecados sociais e os verdadeiros pecados espirituais, mas
aqui trata-se da sombra e ali da realidade. Se é um pouco teólogo deve compreendê-lo.
- Confesso que não dediquei muito tempo à teologia. - disse Cotgrave. Lamento-o, mas,
para voltar ao nosso assunto, acha que o pecado é uma coisa oculta, secreta?
- Sim. É o milagre infernal, como a santidade é o milagre sobrenatural. O verdadeiro
pecado eleva-se a um tal grau que nós não podemos de forma alguma suspeitar da sua
existência. Ele é como a nota mais baixa
do órgão: tão profunda que ninguém a ouve.
Por vezes há falhas, quedas que conduzem ao hospital de loucos ou
a desenlaces mais
horríveis ainda. Mas em caso algum o deve confundir com as culpas sociais. Lembre-se
do Apóstolo: ele falava do outro lado e fazia
uma distinção entre as ações caridosas e a
caridade. Assim como se pode dar tudo aos pobres e no entanto ter falta de caridade,
podem evitar-se todos os pecados e no entanto ser uma criatura do mal.
- Aí está uma singular psicologia! - disse Cotgrave.
Mas confesso que ela me agrada. Suponho que, na sua opinião, o verdadeiro pecador
podia facilmente passar por uma personagem inofensiva?
- Certamente. O mal verdadeiro nada tem a ver com a sociedade. O Bem também não,
aliás. Acha que teria sentido prazer
com a companhia de São Paulo? Pensa que se
teria entendido bem com sir Galaad? Passa-se o mesmo com pecadores e com santos.
Se encontrasse um verdadeiro pecador, e nele reconhecesse o pecado, é certo que se
sentiria tomado de pânico. Mas talvez
não houvesse qualquer motivo para que esse
homem lhe desagradasse. Pelo contrário, é muito possível que se conseguisse
esquecer o pecado dele, achasse a sua convivência agradável. E no entanto!... Não,
ninguém pode adivinhar quanto o verdadeiro mal é pavoroso! Se as rosas e os lírios
deste jardim começassem subitamente a cantar nesta madrugada que desponta, se os
móveis desta casa começassem a andar em procissão, como no conto de Maupassant!
- Estou satisfeito por ter voltado a essa comparação disse Cotgrave -, pois queria perguntar-lhe a que correspondem, na humanidade, essas proezas imaginárias das coisas de que fala. Mais uma vez, o que é então o pecado? Gostaria enfim de um exemplo concreto.
Pela primeira vez, Ambrose hesitou:
- Já lhe disse, o verdadeiro mal é raro. O materialismo da nossa época, que muito fez para suprimir a santidade, talvez tenha feito ainda mais para suprimir o mal. Nós achamos a Terra tão confortável que não temos vontade nenhuma de subir nem de descer. Tudo se passa como se o especialista do Inferno estivesse reduzido a trabalhos puramente arqueológicos.
- No entanto, consta que as suas investigações se estenderam até à época presente?
- Vejo que está realmente interessado. Pois bem, confesso que na verdade reuni alguns documentos...
[...]
- Estou satisfeito por ter voltado a essa comparação disse Cotgrave -, pois queria perguntar-lhe a que correspondem, na humanidade, essas proezas imaginárias das coisas de que fala. Mais uma vez, o que é então o pecado? Gostaria enfim de um exemplo concreto.
Pela primeira vez, Ambrose hesitou:
- Já lhe disse, o verdadeiro mal é raro. O materialismo da nossa época, que muito fez para suprimir a santidade, talvez tenha feito ainda mais para suprimir o mal. Nós achamos a Terra tão confortável que não temos vontade nenhuma de subir nem de descer. Tudo se passa como se o especialista do Inferno estivesse reduzido a trabalhos puramente arqueológicos.
- No entanto, consta que as suas investigações se estenderam até à época presente?
- Vejo que está realmente interessado. Pois bem, confesso que na verdade reuni alguns documentos...
[...]
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