domingo, 29 de dezembro de 2013

As muralhas Circulares

- Pois bem, agora que entendes que podemos perceber de várias formas a realidade, e assim, interpretá-la de diversas formas, posso passar pra tese oficial.
- Sim, atá agora não vi novidade, eu apenas não compreendia como isso podia existir.

Era de fato, um ouvinte anestesiado pelos discursos da realidade padrão.

- Não lhe garanto que essa versão minha é inédita, não o poderia dizer. Mas de fato, a geri numa dessas meditações espontâneas. A partir dela, proponho uma estrutura para essas realidades. Imaginemo-a como um vasto plano, ou se quiserdes, como a própria terra. Nós, homens, em nossa vaidade e medo, construímos muralhas circulares, formando camadas no solo. Pense numa pedra que fora jogada num lago, as ondas se propagam formando círculos na água, esses círculos representam as muralhas. Assim se parecem as nossas percepções da realidade. A princípio, pensei apenas em três muralhas. A primeira, mais profunda, chamarei intra-realidade, a do meio, apenas realidade, e a última, hiper-realidade. Vivemos a maior parte do tempo nas duas primeiras. A área realidade, compreende à nossa lucidez e vivemo-la quando acordados. A intra-realidade se dá quando reunimos o nosso contingente de pensamento na área da primeira muralha, isso acontece no sono. Certas pessoas, conseguem acessar a terceira muralham e funcionam como exploradores da terra. A hiper-realidade, experimentam, talvez, os loucos, os sensitivos, os paranormais, os feiticeiros, os profetas... Dela não sei lhe dizer muito, percebo que apenas falar que ela existe já demanda um certo esforço. Há ainda, a possibilidade de viver NA muralha, e assim, olhar para as duas áreas e juntar percepções de ambas de uma só vez. Chamarei essas áreas de inter-realidades Por exemplo: entre o área da intra-realidade e o da realidade, encontramos o divã. Que nada  mais é, que uma possibilidade de se estar entre o sono e a vigília. Entre a realidade e a hiper-realidade, podemos encontrar os ritos e os estados alterados de consciência. Há ainda, uma classe que pode estar em ambas as inter-realidades: os loucos e a meditação. Com uma diferença, a meditação acessa essas áreas com consciência.

Parou por um minuto, enquanto seu ouvinte reunia a estrutura em sua mente. Seu olhar de interesse, logo se manifestou pela sua boca. O que não sabia, era que aquele era um jovem raro. Apenas um diálogo era o suficiente para lhe abrir as portas da imaginação.

- De fato, deveras interessante essa leitura. Creio conseguir pensar em alguns detalhes a mais.

- Por favor! Comente-os! 

Sua alegria logo se lhe estampou a face. Encontrara uma alma disposta a pensar.

- Os sonhos premonitórios. Ficaria ao mesmo tempo entre a primeira e a terceira muralha, como poderia ser?

- Não sabia que gostavas de preparar armadilhas! Creio não poder responder sua pergunta. De fato, os sonhos premonitórios têm essa característica.

- Foi uma pergunta retórica. 

Seu rosto adquiriu aspectos de vitória. Gostava de sentir que ganhara de se seu futuro mestre, mesmo que apenas num exemplo.

- Pombos-correio! - Respondeu com graça. E gerou risos no outro. - Sério! Imagine que eles transportam mensagens da terceira muralha, enquanto estamos descansando nos terrenos da primeira. Assim, funcionariam como Hermes, transmitindo mensagens da hiper-realidade pra intra-realidade.

- Nos daremos muito bem juntos garoto! - Disse o mestre, agradecido aos céus, por terem mandando tão habilidoso mensageiro.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Sobre santos e pecadores - A Natureza do Mal

Segue abaixo um enxerto do romance "The White People" de Arthur Machen, um escritor do final do séc XIX e começo do séc XX um tanto quanto desconhecido e nem por isso, indigno.

[...]

- Creio que o senhor cai no erro frequente daqueles que limitam o mundo espiritual às regiões do bem supremo. Os seres extremamente perversos também fazem parte do mundo espiritual. O homem comum, Carnal e sensual, nunca será um grande santo. Nem um grande pecador. Na maioria, somos simplesmente criaturas contraditórias e, no fim de contas, desprezíveis. Seguimos o nosso quotidiano caminho de lama sem compreender o profundo significado das coisas, e eis porque, em nós, o bem e o mal são idênticos: de ocasião, sem importância. - Disse Ambrose.

- Pensa então que um grande pecador é um asceta, da mesma forma que o grande santo?

- Aqueles que são grandes, tanto no bem como no mal, são os que abandonam as cópias imperfeitas e se dirigem aos originais perfeitos. Para mim, não tenho qualquer dúvida: os maiores de entre os santos nunca fizeram uma boa ação, no sentido vulgar do termo. E, por outro lado, existem homens que desceram ao fundo dos abismos do mal, e que, em toda a sua vida, nunca cometeram aquilo a que se chama uma má ação. 

Deixou a sala por um momento, Cotgrave voltou-se para o amigo e agradeceu-lhe que o tivesse apresentado a Ambrose. 

- É formidável - disse. - Nunca tinha visto este gênero de louco. 

 Ambrose reapareceu com uma nova provisão de uísque e serviu com generosidade os dois homens. Criticou ferozmente a seita dos abstinentes, mas serviu-se um copo de água. Ia recomeçar o monólogo, quando Cotgrave o interrompeu: 

- Os seus paradoxos são monstruosos. Então um homem pode ser um grande pecador e no entanto nada fazer de culpável? Essa é boa!

 - Está completamente enganado - disse Ambrose. - Eu nunca faço paradoxos; bem gostaria de poder fazê-los. Disse simplesmente que um homem pode ser um grande conhecedor dos vinhos de Borgonha e no entanto nunca ter provado vinho ruim nas tabernas. É tudo, e é provável que seja antes um truísmo do que um paradoxo, não é verdade? A sua reação é a prova de que não faz a menor ideia do que pode ser o pecado. Oh, evidentemente, há uma relação entre o Pecado maiúsculo e os atos considerados culpáveis: assassinato, roubo, adultério, etc. Exatamente a mesma relação que há entre o alfabeto e a mais genial poesia. O seu erro é quase universal: adquiriu, como toda a gente, o hábito de apreciar as coisas através de óculos sociais. todos pensamos que um homem que nos faz mal, a nós, ou aos nossos vizinhos, é um homem mau. E é-o, sob o ponto de vista social. Mas não compreende que o Mal, na sua essência, é uma coisa solitária, uma paixão da alma? O assassino médio, na sua qualidade de assassino, não é de forma alguma um pecador no verdadeiro sentido da palavra. É simplesmente um animal perigoso de que nos devemos desembaraçar para salvar a pele. Eu classificá-lo-ia de muito melhor vontade entre as feras do que entre os pecadores.

 - Tudo isso me parece bastante estranho. 

 - Mas não é. O assassino não mata por razões positivas, mas negativas; falta-lhe qualquer coisa que os não-assassinos possuem. O Mal, em contrapartida, é totalmente positivo. Mas positivo no mau sentido. E é raro. Há certamente menos pecadores verdadeiros do que santos. Quanto a esses a que chama criminosos, são seres incômodos, bem entendido, e dos quais a sociedade tem razão de se defender, mas entre os seus fatos anti-sociais e o Mal há uma enorme distância, pode crer!

Fazia-se tarde. O amigo que levara Cotgrave a casa de Ambrose já ouvira sem dúvida tudo aquilo. Escutava com um sorriso fatigado e um pouco trocista, mas Cotgrave começava a pensar que o seu alienado talvez fosse um sábio. 

- Sabe que estou imensamente interessado? - disse. - Julga então que não compreendemos a verdadeira natureza do mal?

- Damos-lhe valor demais. Ou então de menos. Por um lado, o que chamamos pecado são as infrações às leis da sociedade, aos tabus sociais. É um exagero absurdo. Por outro lado, damos tamanha importância ao pecado que consiste em deitarem a mão aos nossos bens ou às nossas mulheres que esquecemos completamente o que há de horrível nos verdadeiros pecados.

- Mas o que é então o pecado? - perguntou Cotgrave.

- Sou obrigado a responder à sua pergunta com outras perguntas. Que sensação experimentaria se o seu gato ou o seu cão lhe começasse a falar com voz humana? Se as rosas do seu jardim se pusessem a cantar? Se as pedras da rua aumentassem de volume sob os seus olhos? Pois bem, estes exemplos podem dar-lhe uma pálida ideia do que é realmente o pecado.

 - Escutem - disse o terceiro homem, que até ali se mantivera muito calmo -, parecem- me ambos bastante excitados. Eu vou para casa. Perdi o meu autocarro e vou ser obrigado a andar a pé. 

Ambrose e Cotgrave instalaram-se mais profundamente nos respectivos caldeirões depois da sua partida. Com a bruma da madrugada que gelava as vidraças, a claridade dos candeeiros tornava-se pálida.

- O senhor surpreende-me - disse Cotgrave. - Nunca tinha pensado nessas coisas. Se é realmente assim, é necessário remover tudo. Então, na sua opinião, a essência do pecado seria... 

- Pretender conquistar o céu de assalto - disse Ambrose. - Para mim o pecado reside na vontade de penetrar de maneira interdita numa esfera diferente e mais elevada. Deve portanto compreender o motivo por que é tão raro. Poucos homens na verdade, desejam penetrar noutras esferas, quer sejam elevadas ou baixas, de forma permitida ou proibida. Há poucos santos. E os pecadores, no sentido em que o entendo, são ainda mais raros. E os homens de gênio (que por vezes participam de ambos) são raros também... Mas é talvez mais difícil ser um grande pecador do que um grande santo.

- Por o pecado ser profundamente contra a natureza?

- Exatamente. A santidade exige um esforço grande, ou quase, mas é um esforço que se exerce em vias que outrora eram naturais. Trata-se de recuperar o êxtase que o homem conheceu antes da queda. Mas o pecado é uma tentativa para obter um êxtase e uma sabedoria que não são, e que nunca foram dados ao homem, e aquele que o tenta torna-se demônio. Eu disse- lhe que o simples assassino não é necessariamente um pecador. E é verdade, mas o pecador é, por vezes, um assassino. Estou a pensar em Gilles de Rais, (Senhor feudal do século XV, célebre pelos seus crimes; chegou a matar crianças nas suas cerimônias de magia negra.). por exemplo. Sabe que, se o bem e o mal estão igualmente fora do alcance do homem de hoje, do homem vulgar, social e civilizado, o mal é-o num sentido ainda mais profundo. O santo esforça-se por recuperar um dom que perdeu; o pecador esforça-se por qualquer coisa que nunca possuiu. No fim de contas, ele recomeça a Queda.

- É católico? - pergunta Cotgrave.

- Sim, sou um membro da igreja anglicana perseguida.

- Então o que pensa desses textos que chamam pecado aquilo que o senhor classifica de delito sem importância?

- Repare, por favor, que nesses textos da minha religião vê-se continuamente surgir o termo feiticeiro, que me parece a palavra-chave. Os delitos menores, que são chamados pecados, só são chamados assim na medida em que é o feiticeiro que é perseguido pela minha religião, sob a máscara do autor desses pequenos delitos. Pois os feiticeiros servem-se das fraquezas humanas resultantes da vida material e social como instrumentos para atingir o seu objetivo infinitamente execrável. E deixe-me dizer- lhe o seguinte: os nossos sentidos superiores estão tão embotados, estamos a tal ponto saturados de materialismo, que com certeza não reconheceríamos o verdadeiro mal se por acaso o encontrássemos.

- Mas não experimentaríamos, apesar de tudo, um certo horror? Esse horror que há pouco evocou ao convidar-me a imaginar rosas que começassem a cantar?

- Se fôssemos seres naturais, sim. As crianças, certas mulheres e os animais experimentam esse horror. Mas, na maior parte de nós, as convenções, a civilização e a educação ensurdeceram e obscureceram a natureza. Por vezes podemos reconhecer o mal pelo seu ódio ao bem; é tudo e é puramente fortuito. Na realidade, os Hierarcas do Inferno passam despercebidos entre nós.

- Pensa que sejam eles próprios inconscientes do mal que encarnam?

- Creio que sim. O verdadeiro mal, no homem, é como a santidade e o gênio. É um êxtase da alma, qualquer coisa que ultrapassa os limites naturais do espírito, que escapa à consciência. Um homem pode ser infinitamente, horrivelmente mau e nunca o suspeitar. Mas, repito, o mal, no verdadeiro sentido da palavra, é raro. Creio mesmo que se torna cada vez mais raro.

- Tento segui-lo - disse Cotgrave. - Quer dizer que o Mal verdadeiro é de uma essência completamente diferente daquilo a que chamamos vulgarmente o mal?

 - Absolutamente. Um pobre tipo aquecido pelo álcool entra em casa e mata a pontapés a mulher e os filhos. É um assassino. E Gilles de Rais também é um assassino. Mas compreende o fosso que os separa? A palavra é acidentalmente a mesma em cada caso, mas o sentido é totalmente diferente. É certo que existe a mesma fraca semelhança entre todos os pecados sociais e os verdadeiros pecados espirituais, mas aqui trata-se da sombra e ali da realidade. Se é um pouco teólogo deve compreendê-lo.

- Confesso que não dediquei muito tempo à teologia. - disse Cotgrave. Lamento-o, mas, para voltar ao nosso assunto, acha que o pecado é uma coisa oculta, secreta?

- Sim. É o milagre infernal, como a santidade é o milagre sobrenatural. O verdadeiro pecado eleva-se a um tal grau que nós não podemos de forma alguma suspeitar da sua existência. Ele é como a nota mais baixa do órgão: tão profunda que ninguém a ouve. Por vezes há falhas, quedas que conduzem ao hospital de loucos ou a desenlaces mais horríveis ainda. Mas em caso algum o deve confundir com as culpas sociais. Lembre-se do Apóstolo: ele falava do outro lado e fazia uma distinção entre as ações caridosas e a caridade. Assim como se pode dar tudo aos pobres e no entanto ter falta de caridade, podem evitar-se todos os pecados e no entanto ser uma criatura do mal.

- Aí está uma singular psicologia! - disse Cotgrave. Mas confesso que ela me agrada. Suponho que, na sua opinião, o verdadeiro pecador podia facilmente passar por uma personagem inofensiva?

- Certamente. O mal verdadeiro nada tem a ver com a sociedade. O Bem também não, aliás. Acha que teria sentido prazer com a companhia de São Paulo? Pensa que se teria entendido bem com sir Galaad? Passa-se o mesmo com pecadores e com santos. Se encontrasse um verdadeiro pecador, e nele reconhecesse o pecado, é certo que se sentiria tomado de pânico. Mas talvez não houvesse qualquer motivo para que esse homem lhe desagradasse. Pelo contrário, é muito possível que se conseguisse esquecer o pecado dele, achasse a sua convivência agradável. E no entanto!... Não, ninguém pode adivinhar quanto o verdadeiro mal é pavoroso! Se as rosas e os lírios deste jardim começassem subitamente a cantar nesta madrugada que desponta, se os móveis desta casa começassem a andar em procissão, como no conto de Maupassant!

- Estou satisfeito por ter voltado a essa comparação disse Cotgrave -, pois queria perguntar-lhe a que correspondem, na humanidade, essas proezas imaginárias das coisas de que fala. Mais uma vez, o que é então o pecado? Gostaria enfim de um exemplo concreto.

Pela primeira vez, Ambrose hesitou:

- Já lhe disse, o verdadeiro mal é raro. O materialismo da nossa época, que muito fez para suprimir a santidade, talvez tenha feito ainda mais para suprimir o mal. Nós achamos a Terra tão confortável que não temos vontade nenhuma de subir nem de descer. Tudo se passa como se o especialista do Inferno estivesse reduzido a trabalhos puramente arqueológicos.

- No entanto, consta que as suas investigações se estenderam até à época presente?

- Vejo que está realmente interessado. Pois bem, confesso que na verdade reuni alguns documentos...

[...]