sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Da eternidade



"O movimento, ocupação de diferentes locais em diferentes instantes, é inconcebível sem tempo; é-o igualmente a imobilidade, ocupação de um mesmo local em diferentes pontos do tempo. Como pude não perceber que a eternidade, a que tantos poetas aspiram com amor, é um artifício esplêndido que nos liberta, nem que seja fugazmente, da intolerável opressão do sucessivo?"


Borges, no prólogo do seu "História da eternidade", desconstruindo pensamentos bem estabelecidos no imaginário coletivo de forma surpreendente.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A sabedoria de Feuerbach

"Por isso, a única coisa que podes objetivar, declarar como infinita definir como infinita, definir como sua essência, é apenas a natureza do sentimento. Não tens aqui outra definição de Deus a não ser esta: Deus é o sentimento puro, ilimitado, livre.  Qualquer  outro Deus que estabeleceres aqui é um Deus que chega empurrado, vindo de fora do teu sentimento. O sentimento é ateu no sentido da crença ortodoxa que como tal associa a religião a um objeto exterior; o sentimento nega um Deus objetivo - ele é um Deus em si mesmo. Somente a negação do sentimento é, sob o ponto de vista do sentimento, a negação de Deus. És apenas muito covarde ou limitado para confessar com palavras o que o teu sentimento afirma em silêncio. Preso a escrúpulos vindos de fora, incapaz de compreender a grandeza do sentimento, tu te escandalizas com o ateísmo religioso do teu coração e destróis neste escândalo a unidade que tem o teu sentimento consigo mesmo no momento em que refletes um ser diverso, objetivo e assim te entregas necessariamente às velhas questões e dúvidas: se existe um Deus ou não? Questões e dúvidas que desaparecem, que se tornam mesmo impossíveis quando o sentimento é designado como sendo a essência da religião. O sentimento é o teu poder mais íntimo e ao mesmo tempo um poder distinto, independente de ti, ele  está em ti e acima de ti: ele é a tua mais genuína essência, mas que te surpreende como se fosse uma outra espécie, em síntese, o teu Deus - como pretendes ainda distinguir esta tua essência em ti de um outro ser objetivo? Como podes sair do teu sentimento?
O sentimento foi salientado aqui apenas como exemplo. O mesmo se dá com qualquer outra força, capacidade, potência, realidade ou atividade - o nome não interessa - que se declarar como órgão essencial de um objeto."

Disse Feuerbach no primeiro capítulo de "A essência do cristianismo".
Aproximando dessa forma, conceitos repetidos incansavelmente ao longo dos séculos tais como: "Venha a nós o Teu reino", "Um é tudo e tudo é Um", "Deus está no interior do homem", "Imagem e semelhança", "Parte divina", "Homem divino" e etc.
Conceitos que algum dia foram proclamados pelo cristianismo e que hoje, ironicamente, costumam se encontrar fora dele.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O Nome da História

"A eremita trouxe as xícaras de chá e sentou-se de frente para o adolescente na mesa de madeira debaixo da pérgula, junto de onde ele tinha deixado a bicicleta. Tomaram um gole em sincronia e resvalaram numa página de silêncio enquanto observavam o ocre sem limites de Val d'orcia.
- Em que você está pensando - ela disse.
- Que talvez Deus não exista.
Ele tomou mais um gole, mas ela franziu um pouco a testa e não soube preservar o silêncio que ele talvez esperasse.
- Eu às vezes oro para que Deus não exista - ela disse de repente, a xícara junto ao peito como uma vela numa procissão.
- Como assim?
- Não sei. Às vezes penso que seria belíssimo de Deus fosse uma invenção dos homens.
- Não sei - ele coço a barba rala. - Eu preferia que Deus fosse mais importante do que uma boa alucinação.
- É que - ela gastou um instante juntando palavras para descrever o irromper de sangue que trazia dentro do peito - isso se ajustaria perfeitamente ao Deus que eu gostaria de adorar e servir. Um Deus que se permitisse criar. Que se permitisse aperfeiçoar.
- Mas, que se fosse assim, seria para sempre subalterno aos homens.
- Não vejo porquê - ela foi sincera. - Talvez tudo no universo seja subalterno aos homens, menos esse Deus.
- Você está de novo entrando em terreno de excomunhão.
- E você veio buscar companhia num eremitério - ela explicou, vagamente irritada.
E voltaram a habitar o silêncio. Ele arriscou olhá-la por um instante, depois fechou os olhos e meneou a cabeça para capturar o dia no cheiro do vento.
- Acho que tudo está ligado - ela não resistiu - a essa coisa humana de contar histórias. Histórias que tenham começo, meio e fim. O desejo de ouvir e contar histórias é parte da nossa própria estrutura. O homem é maior que os anjos, mas irrompe o que estiver fazendo para dobrar-se à superioridade da narrativa. O universo inteiro é menor que a menor parábola.
- Você está querendo dizer que Deus é uma ficção.
- Não, estou dizendo que as histórias podem ser indicação de Deus - ela corrigiu, e apertava a xícara entre os dedos como se o calor da tarde não bastasse para aquecê-la. - E que nós, seres humanos, somos feitos de tal forma que o universo é regido de acordo com as histórias que contamos. Quando as ficções mudam, o mundo muda em conformidade.
- Isso é porque contamos histórias para inventar um sentido para o mundo - ele conformou-se ao papel de antagonista que no rumo da conversa ela havia destinado a ele. - A ficção dá a ordenação que o mundo por si mesmo não tem. Para ouvir histórias é preciso contribuir com uma espécie de "submissão experimental", uma ingenuidade assumida de caso pensado. Fazemos isso na esperança de encontrar um sentido para a coisa toda. O que você está dizendo é que Deus não passa do resultado mais elevado desse tipo de experimentação. A maior história jamais contada, por assim dizer.
- Quero dizer que acho que Deus existe mesmo, mas que só se manifesta na ficção.
- O que é absurdo - ele disse, e imediatamente lamentou não ter um argumento melhor para interpor.
Ele mudou de posição no banco e uma perna roçou por um instante a meia preta dela. Ela recuou imediatamente, mas mais por coordenação fraternal do que por verdadeiro constrangimento. Nunca falariam a respeito disso, mas sabiam que não fosse a diferença abismal de idade teriam juntos explorado em redemoinho as camas do verão. Nem os votos dela nem o constrangimento dele teriam se colocado no caminho.
- E há algo sobre Deus que não seja absurdo? A ortodoxia, que é conservadora, insiste nisso. A liturgia. Nossa amizade é absurda.
Ele tomou o último gole e afastou a xícara para o centro da mesa. Depois alçou uma perna para cima do banco, apertou-a junto do corpo e apoiou o queixo no joelho. Ela olhava com um vago sorriso para um ponto no ar.
- Estou aqui tentando lembrar o nome de uma história de Jorge Luis Borges¹ sobre um agente secreto num país estrangeiro que mata um homem só por causa do nome dele. Ele conversam um pouco sobre destino, vida e morte e depois o sujeito mata esse civil desconhecido só porque o nome dele, quando a notícia do assassinato sair no jornal, servirá de senha para que a organização do agente deslanche alguma mobilização de guerra.
- E por que você quer lembrar o nome da história?
- Não sei. É que a ideia do conto se tornou de imediato uma obsessão pra mim, essa de matar uma pessoa só para passar uma mensagem - ela finalmente olhou diretamente para ele. Você me mataria para passar uma mensagem? Como posso saber que você não tem um revólver na mochila?
- Você não tem o nome certo - ele disse, e procurou o horizonte. - Não é a menagem que eu quero passar.
Ela baixou a cabeça e sorriu, imediatamente irritada por ter se permitido irritar tão facilmente. Ela às vezes esquecia que ele era homem, mas isso só até que ele a fizesse lembrar do jeito mais inequívoco. Que os homens cedessem tão facilmente ao seu próprio arquétipo era, por si mesmo, o grande arquétipo masculino.
- A pergunta que você na verdade que me fazer - ele adivinhou, - é se eu mataria Deus para passar uma mensagem.
E olhou para ela.
- A pregunta que eu quero fazer - ela exigiu, muito empertigada, - é se Deus se deixaria matar para passar uma mensagem."


Disse Paulo Brabo em "As Divinas Gerações"



¹ "O jardim de veredas que se bifurcam" - Conto de Borges publicado no livro "Ficções". O nome do homem em questão é Albert, morto pelo protagonista para indicar a cidade a ser atacada pelo exército alemão. Conto altamente recomendado para qualquer pessoa.